Foto da 7ª Marcha do Orgulho Trans de São Paulo por Adeloyá
Qual o lugar das vidas trans na política atual?
Até quando seremos obrigades a assistir à utilização das nossas vidas como agenda para polemizar e gerar engajamento político para a extrema-direita? O que falta para que as esquerdas se deem conta da centralidade que os discursos anti-trans e LGBTfóbicos ocupam na ascensão da neofascista e conservadora global? Por que continuam nos ignorando, menosprezando nossa força política e se esquivando de encarar a necessidade urgente de um debate público qualificado e combativo sobre gênero e sexualidade? Há algum tempo essas questões pairam e me revolto com a incapacidade (ou seria desinteresse?) das esquerdas tradicionais em lutar conosco de verdade, inclusive enfrentando diretamente a manipulação da opinião pública pelos fundamentalistas religiosos. Pautar esse debate de maneira educativa e contundente é fundamental para impedir o assustador avanço da direita global, compreendendo que as discussões de gênero estão no cerne das estratégias de desinformação, vide a força das fakenews sobre “kit gay” e “ideologia de gênero”. É preciso reconhecer que, sem uma articulação política combativa unindo lutas transfeministas e anticapitalistas contra o neofascimo global, continuaremos a testemunhar a deterioração do Estado, da democracia e dos direitos sociais coletivos.
As discussões públicas relativas às pessoas trans, aos direitos LGBTQIA+ e aos direitos reprodutivos de pessoas com útero se tornaram temas incontornáveis da política contemporânea. No entanto, ao contrário do esperado, é a extrema-direita e as lideranças religiosas conservadoras que tem encabeçado e se apropriado da discussão para ganhar adeptos através do medo, da manipulação e da violência. A quase total ausência de políticas nacionais de educação sobre gênero e sexualidade, somada ao crescimento do protestantismo conservador e à tradição LGBTfóbica do país, vem sendo aproveitada por essas forças para construir um sentimento coletivo de medo e ódio direcionados às comunidades dissidentes. De repente, as pessoas trans se tornaram culpadas pela falta de segurança, educação, emprego e saúde, em suma, pela própria crise da democracia burguesa e seus valores. Não se enganem, no entanto, pensando que “apenas” pessoas transvestigêneres são alvos desses ataques; a sociedade como um todo está ameaçada diante da força de discursos e práticas cada vez mais violentos e intolerantes à diversidade.
Não é por acaso que, entre as primeiras ações do governo de Donald Trump, estejam medidas que ferem direitos de pessoas trans e reinstituem o reconhecimento exclusivo dos gêneros “feminino” e “masculino”. Há um recado poderoso sendo dado para o mundo com esses gestos. Vidas trans estão sendo colocadas no centro do debate sem ser pelas nossas próprias vozes e estratégias! Há cada vez mais líderes evangélicos e políticos de extrema-direita ganhando notoriedade com discursos de ódio focados na comunidade LGBTQIA+, como Marco Feliciano, Nikolas Ferreira, Damares Alves e outros representantes do que há de mais podre e conservador na sociedade brasileira. Se existe uma frente ampla na política nacional, ela é constituída pela união de forças neoliberais, autoritárias, criminosas, cristãs, conservadoras e moralistas rumo à destruição de direitos sociais e modos de existir diversos.
Diante do protagonismo “fundamentalista de gênero” constatamos um preocupante acovardamento e fuga da discussão por parte de movimentos de esquerda e partidos ditos progressistas. Nas últimas eleições, a gramática de gênero e sexualidade esteve praticamente ausente dos discursos políticos da esquerda hegemônica, exceto por algumas poucas (e excelentes!) candidaturas ao legislativo que encampam essas discussões como plataforma central de atuação (em sua quase totalidade lideranças mulheres). Nossas vidas ainda são um tabu para as esquerdas, que compactuam “silenciosamente” com a falta de informação e rejeição moral de grande parte da população em relação às nossas existências. A “dificuldade de compreensão” e o “identitarismo” das nossas pautas são colocados como falsa justificativa para ocultar o desinteresse por nossas vidas. Além disso, a falta de disposição para a disputa desse campo discursivo revela a incompreensão da importância das lutas de gênero para todas outras lutas, inclusive a da classe trabalhadora!
Mas, afinal de contas, as pessoas trans também não são parte da classe trabalhadora? É desolador perceber que ainda são poucas as lideranças progressistas (em sua maioria, homens cis brancos e heterossexuais) que estão comprometidos o debate de gênero para combater o avanço ultraconservador. Enquanto nos acusam de “identitarismo” e “militância lacração”, essas mesmas lideranças testemunham incrédulos o alastramento do cristianismo conservador com sua “ideologia de gênero” aliada a um projeto de sociedade neoliberal, militarizada e violenta. Parecem não ser capazes de ver o óbvio: políticas de gênero e sexualidade radicais não são “acessórias”, a aversão a elas está na base de toda ascensão neofascista. Honestamente, acredito que, enquanto não existir um sério investimento em políticas estruturais voltadas para esse campo, continuaremos perdendo para o conservadorismo. Urge um aprofundamento dessas discussões para além da “diversidade e inclusão” rasa, liberal e mercadológica, que converte nossas existências em nicho de mercado lucrativo para grandes mídias e empresas.
Este é o cenário: de um lado nos tornamos “as maiores ameaças” a uma ideia hipócrita de família neoliberal e cristã, do outro, somos um desvio “identitário” que fragmenta a “luta da classe trabalhadora”. Essa falsa dicotomia ofusca a nossa rica capacidade de desenvolver tecnologias de resistência política preciosas para uma renovação das lutas de esquerda (e é também por isso que a extrema-direita nos teme e odeia tanto!). Há uma radicalidade historicamente inventiva nas lutas trans, negras e indígenas. Suas lideranças têm crescido e revelado caminhos muito potentes de transformação social e de engajamento expressivo de suas comunidades, inclusive se apropriando das novas tecnologias para isso. Elas propõem uma perspectiva de ação em coalizão que reconhece todas as lutas como complementares e fundamentais para vencer a ascensão do neofascismo e construir uma sociedade livre e democrática.Nossa vidas seguem sendo alvo dos mais horríveis ataques, mas continuamos entregando excelência em nossas produções artísticas e intelectuais e nos movimentos políticos, sem subestimar a capacidade das pessoas de entender nossas demandas e de se somarem à nossa luta. Temos muito a contribuir estrategicamente com as esquerdas, aliando o transfeminismo a debates macropolíticos, econômicos e sociais, mas para isso precisamos de um real acolhimento das nossas existências, garantindo-nos também espaços de poder e liderança para disputar imaginários. O contexto de inegável força da extrema-direita está carregado de contradições e desafios que, para serem enfrentados, demandam uma revisão e reconstrução dos caminhos coletivos. É sempre tempo de reconhecer erros e tecer uma luta à esquerda sem negligenciar nenhuma população subalternizada. Dependemos de uma verdadeira aliança das esquerdas pela proteção e valorização das vidas e saberes trans, demonstrando que pautar gênero é também disputar publicamente economia, segurança, saúde e uma educação libertadora.