COLUNA

Maya de Paiva

[ELA/DELA]

Atriz e pensadora recifense que mobiliza teatro, cinema, performance e filosofia decolonial em suas

Convite à uma crítica das identidades

Nenhuma identidade é capaz de abarcar nossa complexidade

A noção de identidade e a “política identitária” são temas incontornáveis do nosso tempo. Graças a muitas lutas e resistências históricas as pautas dos movimentos negros, indígenas, feministas, LGBTQIAP+ e periféricos conquistaram um espaço muito importante no debate público (e ainda precisamos conquistar muito mais!). Reconhecer a importância da afirmação de identidades que historicamente foram marginalizadas é indispensável para que avancemos na garantia de direitos e justiça social. Por outro lado, me parece também importante exercitar um olhar crítico sobre a identidade, reconhecendo suas problemáticas e eventuais empecilhos para a construção de horizontes libertários mais radicais. Longe de propor respostas fechadas ou certezas absolutas, me interessa aqui convidar quem lê a refletir criticamente sobre o tema para que juntes desenvolvamos caminhos alternativos, acreditando que construção coletiva já é seguir (r)existindo.

É evidente a transformação social gerada pela ampla difusão das políticas afirmativas e do debate sobre as identidades. Nos mais diversos setores da sociedade passou-se a dar mais atenção aos atravessamentos de raça, gênero, sexualidade, classe e origem geográfica e como eles determinam todas as relações de poder e os acessos a serviços e direitos. Com isso, discussões que há décadas vinham sendo travadas no interior dos movimentos e das academias agora passaram a ser assunto nas salas de aula, ambientes familiares, redes sociais, igrejas, programas de TV, etc. Basicamente vivemos em um momento em que reconhecer, nomear e reivindicar identidades é fundamental para compreender e transformar as relações consigo e com o mundo.

Acontece que, frequentemente, há um esvaziamento da complexidade dessas discussões nas mídias. Ao serem abordadas de maneira rasa ou leviana, as identidades podem se converter em rótulos que cristalizam subjetividades complexas, essencializando de forma determinista as pessoas e, por vezes, resumindo-as a representantes eternas de alguma coletividade. Mas nós somos subjetividades complexas! As feministas negras já nos alertam há muito tempo através da “interseccionalidade”1, por exemplo, sobre a profunda interligação das opressões de raça, gênero, sexualidade e classe que produz um entrelaçamento específico vivenciado por cada sujeita. Desta forma, deve-se reconhecer que somos constituídas simultaneamente por todos esses marcadores e habitamos o mundo a partir dessa complexidade que é coletiva e individual. Somos parte de coletividades, mas também somos indivíduos no mundo e merecemos ter nossas individualidades reconhecidas e respeitadas.

É importante demarcar também que a chamada “política identitária” surge no seio das lutas feministas, antirracistas, LGBTQIA+ e anticapitalistas.  E longe de buscar nos enquadrar em padrões e rótulos, essa é uma ferramenta criada para evidenciar a necessidade de enfrentamentos específicos às opressões que atingem as classes trabalhadoras, sem perder de vista uma luta anticapitalista de maior libertação coletiva.2 Mas, apesar disso, assistimos a um crescente processo de captura liberal desse poderoso instrumento de luta, na tentativa de transformá-lo em nichos de consumo, estereótipos “representativos” em produções culturais e até uma forma de oportunismo político para pessoas que não tem nenhum compromisso com as lutas. O esvaziamento do seu caráter combativo tem levado a uma deturpação da identidade como uma se fosse uma essência que leva à uma pressuposição e pré-determinação sobre as pessoas (e sobre nós mesmes!). 

As identidades não são nosso objetivo final, elas são categorias que nos foram impostas pelas classes dominantes para organizar as formas de exploração e controle. Por outro lado, como mecanismo de resistência nos organizamos em torno delas, redefinindo seus sentidos e construindo redes comunitárias de luta e cuidado. Ressignificamos a violência que nos foi imposta e a transformamos em laços revolucionários, basta ver o que o Movimento Negro Unificado construiu em seus mais de 40 anos disputando a narrativa e a política do país a partir da luta antirracista e desmontando o racismo para devolver à negritude um status de orgulho e resistência. Ou mesmo o caso histórico da fundação da ASTRAL (Associação de Travestis e Liberados), primeira organização de travestis e transexuais da América Latina, que pavimentou o início do movimento transvestigênere a partir de uma valorização das identidades travestis e trans apesar da ampla perseguição e marginalização vigente na sociedade.

Sem dúvidas as identidades definem aspectos significativos das nossas vidas e construir políticas a partir delas nos leva a conquistar muitas coisas, mas esses movimentos também nos revelam a nossa capacidade coletiva de sonhar, vislumbrar outros horizontes e nos autodeterminar coletiva e individualmente para além dos limites dessas identidades impostas. Somos maiores e mais diverses do que as identidades são capazes de representar e temos direito também à nossa singularidade. Por isso, argumento que não devemos nos conformar a elas, pois são também armadilhas que nos capturam, principalmente pelo olhar dominante que nos persegue e reduz. Ou pior, por nós mesmas, quando em nossas próprias comunidades tentamos regular outras pessoas subalternizadas, exigindo formas de pensar e agir homogêneas. Somos pessoas contraditórias, complexas e únicas e devemos nos articular em identidades coletivas sem abrir mão de nossas unicidades. A partir disso, me pergunto: como construir outra relação com as nossas identidades? Como não perder de vista que elas são ferramentas potentes, mas ao mesmo tempo armadilhas ardilosas? E, principalmente, como não deixar que nossas complexidades sejam cristalizadas por identidades que nos foram impostas?

  1. Conceito proposto inicialmente pela estadunidense Kimberlé Crenshaw que passou a ser usado pelos estudos de raça, gênero e na teoria crítica como um todo como ferramenta metodológica de análise das relações sociais e de poder. No Brasil, a pensadora Carla Akotirene é referência no tema por seu estudo detalhado e crítico do conceito na obra “O que é Interseccionalidade?”, publicado em 2019 pela Pólen Livros. ↩︎
  2. O conceito de “politica identitária” foi proposto inicialmente pelo Coletivo Combahee River, organização feminista negra e lésbica em atividade na cidade de Boston entre os anos 1974 e 1980, considerado um marco no desenvolvimento do conceito contemporâneo de identidade e nas discussões decorrentes dele. Para saber mais, indico a leitura do manifesto do grupo lançado em 1977: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/159864/154434.
    ↩︎

COLUNISTA

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Maya de Paiva

[ELA/DELA]

Maya de Paiva é uma artista travesti recifense que circula entre os universos da performance, teatro, cinema e filosofia. É graduada em Filosofia pela FFLCH/USP e estudante da Escola de Arte Dramática (EAD/ECA/USP). Desenvolve trabalhos teóricos e artísticos mobilizando discussões sobre corpo, performatividade, dissidência de gênero, decolonialidade e transfeminismo. Como atriz e performer já participou de sete longas-metragens, uma minissérie, protagonizou dois curtas e realizou peças e performances autorais, como “A Festa”, “TUBO” e “ato de fala”. Desde 2019 atua também como educadora em museus e centros culturais na cidade de São Paulo.
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