COLUNA

Helena Vieira

[ELA/DELA]

Travesti, pesquisadora, transfeminista, escritora, pesquisadora de Teoria Queer.

Ideologia De Gênero: O Gatilho Do Pânico

ESCOLA SEM PARTIDO, DEMOCRACIA E GUERRILHA

O crescimento dos setores conservadores e do populismo autoritário se dá em um momento de crise, tanto no Brasil, quanto no mundo. Crise do capitalismo, do globalismo liberal, da social-democracia. Há uma infinidade de nomes para essa crise. No Brasil, a escalada conservadora se acirra com a crise política. Não é sua causa, mas foi ingrediente no bolo que sustentou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e o tornou possível.

Grupos como o MBL foram capazes de, em relação ao senso comum, operar uma espécie de grande convergência à direita conectando setores militaristas, anti-direitos humanos, liberais, religiosos e anti-petistas de modo geral, fazendo uso, não dos debates econômicos, mas da oposição ao governo petista, antes do impeachment, e após ele, o apelo à moralidade e a um conjunto de pautas culturais conservadoras, dentre elas, a defesa radical do Projeto Escola Sem Partido. E é sobre isso que pretendo falar.

O Escola Sem Partido funda-se na noção de que há uma doutrinação política e ideológica nas escolas e universidades brasileiras, tal doutrinação, teria como objetivos arregimentar crianças para a “esquerda política”, perverter a “neutralidade da ciência” e se opor à “naturalidade da família tradicional”, implantando a ideologia de gênero nas escolas. É sobretudo com base nos argumentos acerca da ideologia de gênero que os defensores da Escola Sem Partido conseguem impor sua agenda à população em geral.

A ideia de uma doutrinação comunista não assusta aos mais simples e aos desinformades tanto quanto a ideia de que seus filhes estarão expostes a todo tipo de perversão sexual, confusão de gênero e não saberão mais o que vão ser. As pessoas se preocupam com as crianças e aceitam estes discursos.

Ideologia de Gênero é uma ideia, sem absolutamente nenhum embasamento científico (em nenhuma ciência) parido no seio da Igreja Católica e tem se popularizado de forma assustadora, convertendo-se em verdadeiro instrumento de guerra cultural e política.

Reúne ignorância, pânico moral, verossimilhança e funciona como uma arma absolutamente poderosa, e que, 20 anos depois de sua primeira aparição em um documento da Igreja já está nos parlamentos de cada cidade e Estado, pequeno ou grande em mais de 50 países. Espalhada por think tanks, ligada a setores ultraconservadores da Igreja Católica, construída, não apenas como forma de combater as proposições feministas e LGBTs, mas como um instrumento de recentralização religiosa, agora é instrumentalizada por conservadores religiosos e não religiosos.

Diferente do que foram as campanhas anti-gay dos EUA ou anteriores aos anos 90, o dispositivo da “ideologia de gênero” é um organismo completo, reúne sob o mesmo signo tanto o comunismo, o marxismo, a teoria queer, o feminismo radical, Butler, Marx e Beauvoir e tem sido um dos principais estandartes de avanço da direita.

É muito mais fácil mover as pessoas contra um grupo que elas pensam que querem fazer mal a seus filhes do que movê-los por um debate econômico.

A operação retórica dos que criaram essa ideia, ao mesmo tempo que opera criando pânico, medo e tornando o terreno cada vez mais duro para as políticas de igualdade de gênero e orientação afetivo-sexual, anulam as possibilidades de resposta ou de argumentação:

Se apresentarmos dados da ONU, o grupo conservador dirá que é uma organização controlada pela Agenda de Gênero, o mesmo com pessoas da academia, com as universidades, com jornais, com os livros. Não há fonte ou referência ou dado capaz de enfrentar esse discurso.

AQUILO QUE CHAMAM DE IDEOLOGIA DE GÊNERO SE ESTRUTURA EM DISTORÇÕES BÁSICAS:

1-) A distorção de que existe uma agenda internacional de destruição dos modelos tradicionais de família;

2-) A distorção de que o feminismo atual tem por objetivo a supremacia feminina ou ainda o fim da reprodução humana;

3-) A distorção de que o entendimento da homossexualidade como um dado da realidade, como a heterossexualidade, promoveria a destruição ou condenação da heterossexualidade;

4-) A distorção de que queremos confundir as crianças, dizendo que elas devem experimentar múltiplos gênero e múltiplas sexualidades;

Assista vídeo da programação da MARCHA DO ORGULHO TRANS que debate essas distorções básicas : 

É um instrumento de medo, fundado em distorções profundas. Não resiste ao debate acadêmico e por isso foge dele.

Para vocês terem uma ideia, já nos anos 90, falava-se em um alerta para que parlamentares cristãos fizessem oposição ao que eles nomearam de ideologia de gênero. Em 98 já falavam, em um documento da Igreja, em Escola Sem Partido, mas com outro nome, dizem que o feminismo e a “agenda de gênero”: queriam transformar as escolas em “campos de reeducação”, já falam em doutrinação.

A censura que enfrentamos hoje tem sido gestada há muito tempo.

É isso. Nos puseram contra a parede com suas mentiras, nomearam e distorceram os Estudos de Gênero sob o nome de ideologia, palavra usada em sentido pejorativo.

CONSPIRACIONISMO, DEMOCRACIA E IDEOLOGIA DE GÊNERO: o terreno fértil.

É justamente a ideia de que haja uma conspiração, uma intenção profundamente nefasta por trás das ações de cada Prefeitura, Governo, pesquisa, Universidade ou organismo internacional, que torna inargumentável a “ideologia de gênero”. Contudo, quero aqui argumentar sobre um dos aspectos que permitem o surgimento da noção de conspiração.

Só se pode falar ou crer em uma conspiração, quando não se toma parte ou se desconhece por completo o que é feito do Estado, da escola, das decisões, dos recursos. O Estado Brasileiro (e também as organizações internacionais e as universidades) são muito pouco transparentes. Há pouco investimento em construir mecanismos mais eficientes de controle, transparência, efetividade, eficiência, accountability e tantas outras formas de aperfeiçoar a participação das pessoas na vida do Estado e da política. Se há ignorância sobre isso, há, necessariamente, campo fértil para a crença na conspiração.

No âmbito da educação há dezenas de dispositivos legais de participação da família e da comunidade na vida escolar, sobretudo os do Art. 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDBE, nos rumos da escola e inclusive, nos caminhos pedagógicos da escola. Entretanto, como isso tem sido implantado? Este é o ponto central.

No âmbito da divulgação científica? Quanto, das pesquisas realizadas nas universidades, têm sido divulgadas?

Não me refiro a ações formais. Mas o investimento mesmo, que torne transparência, responsividade e controle social eixos estruturantes das políticas públicas.

A ausência de transparência na democracia, criminaliza a democracia e os seus processos e abre espaço para o obscurantismo e para o populismo. Se a retórica da “ideologia de gênero” triunfa é também porque o terreno se tornou fértil para isso e nos cabe, como resposta, a defesa da democracia, das liberdades, de uma escola democrática, e principalmente, do acesso ao conhecimento e à informação.

Ilustrações: Laerte Coutinho 

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Helena Vieira

[ELA/DELA]

Helena Vieira é travesti, pesquisadora, transfeminista, escritora, pesquisadora de Teoria Queer, estudou Gestão de Políticas Públicas na USP, e é Bacharelanda em Humanidade na Universidade Federal de Integração da Lusofonia Afrobrasileira UNILAB. Há pelo menos seis anos, é colaboradora do Instituto [SSEX BBOX]. Foi colunista da Revista Fórum e contribuiu com diversos meios de comunicação como o Huffpost Brasil, Revista Galileu (matéria de capa sobre transexualidade), Cadernos Globo (Corpo: Artigo Indefinido), Revista Cult e Blog “Agora É que São Elas” da Folha de São Paulo. Foi consultora na novela “A Força do Querer”, da Rede Globo. Recentemente, foi co-autora dos livros “História do Movimento LGBT”, organizado por Renan Quinalha e James Green, “Explosão Feminista”, organizado por Heloísa Buarque de Holanda, “Tem Saída? Ensaios Críticos sobre o Brasil”, organizado por Rosana Pinheiro Machado e “Ninguém Solta a Mão de Ninguém: Um manifesto de resistência”, da editora Clarabóia. Dramaturga, fez parte do projeto premiado pela Focus Foundation na categoria Artes Cênicas “Brazil Diversity”, em Londres, com a peça “Ofélia, the fat transexual”. Desenvolveu junto ao Laboratório de Criação do Porto Iracema das Artes, pesquisa dramatúrgica intitulada “Onde estavam as travestis durante a Ditadura?”.
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