COLUNA

Jaqueline G. de Jesus

[ELA/DELA]

Mulher Trans, Preta e Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro.

Os bons encontros

“Aqui lanço

Um coração vivido entre os homens,

As minhas roupas e o fulgor de um juramento.

(…)

Só herege sou fiel.

Eu sou tu quando eu sou eu”.

Elogio ao Longínquo, em Ópio e Memória, de Paul Celan.

Os debates promovidos pela Rede Globo em 2017, para a capacitação de sua equipe criativa e convidades na temática de gênero, com foco nas questões vividas pela população trans na sociedade brasileira contemporânea, a publicação de um caderno e a minha participação em mesa sobre gênero na literatura, organizada pela emissora e o Instituto [SSEX BBOX] em parceria com ONU Mulheres e Fundo Elas.

Nós que participamos e os que assistiram certamente se tornaram mais conscientes de si e das possibilidades de ser neste mundo complexo, no qual entrelaçamos uma quantidade monumental de informações para tecer nossas crenças e narrativas.

A consciência é o mecanismo de nosso cérebro, acionado quando pensamos a respeito ou somos perguntades sobre nós mesmos, que agrupa os vários eus que habitam nossos corpos e se entrelaçam na mente. Ela nos permite dizer que somos um(a) (e) só.

O eu sempre é um nós. Você é muites, como eu. Um coro do qual somos cantories e ouvintes ao mesmo tempo. Por isso os bons encontros começam dentro de nós: só podemos ser inteires com as outras pessoas quando somos conosco. E isso é tão difícil!

Nós nos conhecemos – a nós mesmos – muito pouco. A ignorância sobre as diversas formas de ser e de estar dos outros no mundo é apenas a parte visível de nosso profundo e inexorável desconhecimento.

Uma parte incógnita e silenciosa de nós nos observa enquanto encenamos a vida. A maior parte do que expressamos e compreendemos não é verbal, é imagem, aparência, gesto, odor, sensação e sentimento. Mas o curioso é que a parte consciente de nós, ouvintes e videntes (que formamos uma minoria no universo do entendimento das coisas), é ávida por sons ou palavras.

Ansiamos compulsivamente pelo encontro com o outre, espiamos vez ou outra para aquilo em nós que está lá, mesmo que escondido, porém tememos a tal ponto reconhecer o que sabemos de nós mesmos, das nossas dores e prazeres mais fundamentais, que chegamos a ficar paralisades.

Como eu já escrevi: “Toda pessoa é uma encruzilhada de identidades, que se encontram e se misturam para formar quem somos” (JESUS, 2017, p. 70)[1].

A encruzilhada é uma interseção dos caminhos, a vida é assim: feita de caminhos que se encontram, cruzam-se e formam algo que é único e múltiplo. Ela é interseção pulsando, que para entendermos, a partir do olhar compartimentalizado que nos guia em nossa cultura, enquadramos em categorias.

Tudo é misturado ao mesmo tempo. Somos gênero, raça, etnia, idade, orientação sexual, habilidades físicas e mentais, classe social, nível educacional, e tudo o mais que pode haver como dimensão da diversidade.

Eu como exemplo. Tentarei compor uma lista exaustiva de mim: sou mulher, negra, trans, heterossexual, adulta. Filha mais velha, irmã, sobrinha, prima, tia, de família materna mineira e paterna sergipana. Psicóloga, professora doutora, com pós-doutorado, leciono na Baixada Fluminense, bibliófila, palestrante, escritora. Tive uma cadela quando era criança, a Laika. Onívora, não me sinto apetecida por bebidas alcoólicas nem por outras drogas (como o fumo), exceto o café. De classe média, alta, olhos castanhos, cabelos pretos ondulados, brasileira, nasci no Plano Piloto, morei na Ceilândia, na Asa Norte e atualmente na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mosaicista, uso óculos, jogo tarô e I Ching. Não frequento regularmente mas creio nas práticas do candomblé, como em algumas coisas do catolicismo e do espiritismo. Participei da Gnosis, conheci algo da Missão Rosacruz, Fui a primeira zoroastriana “batizada” em Brasília. Viúva. Namorada. Estudei inglês, francês, japonês, alemão, latim, grego arcaico, russo, chinês, esqueci muito delas pela falta de prática. Isso explica muito de quem sou, no entanto ainda é um mísero recorte de mim.

et ceteras que raramente emergem ou são lembrades, talvez porque não sejam considerades tão relevantes por mim e pelos que me cercam. E para você?

Mas costumamos só lembrar de umas e outras. Não só os outros são diferentes de nós e por isso há diversidade. A diversidade começa em nós. Todes somos diversos, não só as outras pessoas. Entretanto aprendemos, desde pequenes, a desviar o olhar da nossa própria diversidade e a desprezar a diversidade de outres. A educação do medo e do ódio tem sobrepujado a da coragem e do amor…

Os bons encontros, que aproximam os corpos e nos trazem alegria, dependem do acaso, mas também da boa vontade para conosco e os outros. De ousar amar.

Observo bons resultados dessa articulação da Globo (especialmente com militantes autônomes ligades ao movimento trans, em boa parte), iles se refletem na sua grade de programação. Darei um singelo exemplo.

Eu me senti aliviada quando a epifania de Ivan(a) – personagem da novela A Força do Querer, interpretado por Carol Duarte – enfim ocorreu: “É isso que eu sou, um homem trans!”, eis o discurso com o qual o doravante Ivan se reconheceu.

Epifania é um termo técnico que utilizo para me referir ao momento em que a pessoa trans se toca da sua identidade de gênero (JESUS, 2016, p. 172)[2].

Ver e ouvir Elis Miranda, travesti interpretada por Silvero Pereira – ator que se aprofundou nas temáticas relacionadas às vidas trans, especialmente das mulheres – e Ivan me deixa mais orgulhosa de ser uma mulher trans – e olha que eu já amo ser uma mulher trans!

Tudo bem que a situação utilizada para explicitar a condição não ocorre na vida “real”, isso é o de menos, pois a cena foi extremamente didática – tanto para o personagem quanto, principalmente, para as pessoas espectadoras leigas. Perfeita linguagem ficcional para quem não tem o mínimo de reflexão sobre gênero, para além do senso comum.

Apesar de falhas conceituais aqui e ali, considero que a novela foi, como complexa produção audiovisual, escrita e produzida por dezenas de pessoas, tem sido, de forma geral, bastante positiva para a visibilidade trans.

E saibam: eu não escrevo aqui babando a Rede Globo. Não preciso nem quero isso. Apenas acho necessário reconhecer o belo e importante trabalho que tem sido feito (ao contrário das outras emissoras, que nada ou mal têm feito).

A ficção é um campo em que as discussões sobre a população trans são raras, muita informação é produzida em forma de postagens, artigos, ensaios, artigos científicos e até livros, porém muito pouco no formato de filmes, peças, novelas, etc.

Essa área é estratégica para o reconhecimento da humanidade das pessoas trans – algo ainda em construção no Brasil.

Para superar os medos e preconceitos não basta apenas informar, é preciso gerar empatia, por meio do afeto, daquela dimensão que as artes, com o seu saber-fazer, potencializam, para além do verbal, por meio das palavras mas tocando os corações, não só as mentes.

Um dos mais poderosos caminhos para a superação do medo do que não conhecemos – termo técnico: hostilidade autística – é a proximidade, a convivência. Ela não resolve tudo por si só, entretanto torna mais familiar o que antes era estranho ou até mesmo inimaginável.

A presença qualificada de personagens como Ivan e Elis Miranda, com suas possibilidades e limitações, na cena televisiva, aproxima milhares de pessoas cis – que não são trans – das pessoas trans. Isso também é uma forma de convivência, e faz toda a diferença no mundo das relações pessoais.

Recebo com bastante entusiasmo as repercussões sociais da novela. Para além da internet. Já fui indagada a respeito também no mundo físico.

Glória Perez no evento de Lançamento do Caderno Globo – CORPO: Artigo Indefinido

Parabenizo Glória Perez e toda a equipe que trabalhou para dar coesão a essa obra coletiva, ao mesmo tempo em que insisto para que os movimentos trans – tanto o organizado quanto os autônomos – aproveitem ao máximo este momento, para exigirem do Estado políticas públicas em prol da cidadanização de nossa população: inclusão educacional e no mundo do trabalho formal, formação de mais pessoas trans em toda a cadeia produtiva da Economia Criativa (não só como atrizes e atores, mas também como roteiristas, diretores, cenógrafos, figurinistas, etc), entre outras iniciativas que já estão pautadas.

E se o Estado não responder, em toda a sua irresponsabilidade e transfobia estrutural, que haja auto-organização, para que, um dia, tenhamos de fato uma comunidade trans aqui no Brasil, ligada pelo compartilhamento de representações em comum e, principalmente, pelo afeto.

[1] JESUS, J. G. (2017). Únicos e Múltiplos. In: GLOBO UNIVERSIDADE, Caderno Globo 12, Corpo: Artigo Indefinido (pp. 70-73). São Paulo: Globo Comunicação.

[2] JESUS, J. G. (2016). Crianças Trans, Vocês Existiam? Memórias e seus impactos nos adultos trans. In: AMARO, S. (Org.), Crianças e Adolescentes: Olhares Interdisciplinares para Questões do Nosso Tempo (pp. 167-184). Rio de Janeiro: Autografia.

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Além da versão impressa, distribuída gratuitamente para os presentes no lançamento, assim como em universidades e parceiros do Globo Universidade, a versão digital está disponível em app.cadernosglobo.com.br

COLUNISTA

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Jaqueline G. de Jesus

[ELA/DELA]

Jaqueline Gomes de Jesus é Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro). Pesquisa, pública e leciona nas áreas de gestão da diversidade e movimentos sociais, com ênfase em identidade, gênero, orientação sexual e raça/etnia. É também investigadora da Rede de Antropologia Dos e Desde os Corpos.
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