COLUNA

Maya de Paiva

[ELA/DELA]

Atriz e pensadora recifense que mobiliza teatro, cinema, performance e filosofia decolonial em suas

TRANSgredir o apagamento, honrar as nossas TRAVessias

Acredito que é um princípio de travessia-transgressão que rege e fundamenta as identidades transvestigêneres. (1*) É importante lembrar de não esquecer que essa ousadia de cruzar os marcos supostamente imutáveis da binariedade é o que nos constitui enquanto dissidentes da cis-heteronorma. A nossa potência de revolução está justamente no trânsito, na transformação. Abraçar a impermanência e a transitoriedade como mote de existência produz uma força muito ameaçadora ao Cistema. Nesse sentido, construir corporalidades, pensamentos, estéticas e políticas a partir desse lema deve ser um compromisso conosco mesmes e com a transformação (para não dizer fim!) desse mundo. Acontece que, frequentemente, caímos em armadilhas da ciscolonialidade (2*) e nos afastamos dessa nossa força maravilhosa e destruídora. Frequentemente somos levades a compactuar com as lógicas da permanência e do apagamento que nos obrigam a negar nossa vivência de trânsito, como se ser trans fosse uma experiência estática. Por isso, tenho refletido sobre como honrar e saudar nossas movências, quem fomos e por onde passamos e, ainda assim, reafirmar quem somos no agora e desejamos ser no futuro. Ser uma pessoa trans é celebrar o movimento como forma de vida e reconhecer as múltiplas temporalidades que nos mobilizam.

Quem vivencia sabe que a transição de gênero é, em si, um processo longo, contínuo e, simultaneamente, doloroso e prazeroso. Um profundo mergulho em si mesme para perceber-se de formas outras que a norma não autoriza, uma auto-investigação sobre outras maneiras de habitar seu corpo, de reconstruir suas práticas e as relações consigo e com o mundo. Esse processo pode ser extremamente traumático graças às inúmeras violências que nos são impostas, mas é sempre de muito aprendizado e autoconhecimento. Digo isso sem romantismos, mas refletindo que a dor também nos ensina muito, apesar de lutarmos para que ela não seja o único caminho para o amadurecimento. Transicionar o próprio mundo é um movimento radical que demanda tempo, cuidado e suporte em uma sociedade que nos isola, nos cobra e nos violenta a todo momento.

É fato que cada pessoa trans vive sua trajetória de uma maneira diferente, mas, ao mesmo tempo, há algo comum que compartilhamos e diz respeito a essa coragem e urgência de se lançar em outros horizontes e possibilidades de vida. Essa experiência comum é justamente o que nos constitui enquanto comunidade transvestigênere e, ao ser politizada, essa experiência pode produzir uma forte rede de afetos e resistência. A despeito dessa multiplicidade compartilhada, a cisgeneridade nos impõe uma narrativa única sobre todo esse percurso: aquela do sofrimento psíquico, da disforia, da exclusão social e do não-pertencimento ao próprio corpo. De fato, todas nós vivemos algo disso em maior ou menor grau, mas resumir a isso todo o processo desse “percebimento”, como diz Renata Carvalho, é reduzir nossa complexidade permitindo que a cisgeneridade narre as nossas histórias.

Sim, há muita dor e dificuldade nas vidas trans, mas há também um poder de travessia-transgressão que é o que nos mantém vives e pulsantes! Nesse sentido, contar nossas histórias ressaltando também nossas diferenças e belezas é uma forma de honrar nosso corre e nossos passos. Nós não somos uma novidade contemporânea, as vidas trans vêm de muitos longe, são séculos e séculos de resistência e memória transcestral. E os horrores da ciscolonialidade não nos definem, muito menos os apagamentos que ela perpetua. Por isso, me questiono sobre como rever as práticas que adotamos que podem reproduzir a lógica da narrativa única e os pagamentos ciscoloniais. É preciso encontrar maneiras de honrar nossas transcestralidades e nossas próprias histórias pessoais reconhecendo aquele princípio da travessia-transgressão como parte de tudo isso.

Em uma conversa recente com Helena Vieira, amiga querida e pensadora inquieta, ela me disse que o grande valor do transfeminismo para as discussões de gênero passa justamente por esse saber acumulado através da experiência corporificada do trânsito entre os pólos supostamente opostos e estanques do sistema de sexo-gênero. Ainda que precária e violentamente, nós, enquanto pessoas trans, vivenciamos algo do gênero que nos foi imposto ao nascer e a passagem por esse lugar nos levou a construir nossa identidade de forma complexa e única. Isso me levou a pensar na noção de outsider within, ou “estrangeira de dentro” em livre tradução, de Patrícia Hill Collins, a partir da qual ela analisa a experiência das mulheres negras pensando-a como significativa para uma crítica das relações raciais e sociais considerando sua posição simultânea de ser outsider e de dentro dos espaços brancos em que circulam trabalhando ou estudando.

Ora, me parece ser possível traçar um paralelo entre esse conceito com a experiência trans. Nossos corpos e trajetórias são marcados por essa vivência enquanto outsiders em uma identidade que nos foi imposta e o trânsito nos permite olhar criticamente para esse sistema de uma maneira única: somos pessoas que passamos por experiências em vários espectros do sistema sexo-gênero. Nesse sentido, seguir apagando nossas vivências “antes da transição” pode funcionar como uma estratégia de controle cis-hetero a fim de desmontar a arma perigosa que temos em mãos: nós provamos que a permanência e imutabilidade do sexo-gênero são ficções e provamos que a transição é um princípio natural da vida. O mundo está em constante transição e nós acolhemos isso plenamente em nossas próprias identidades!

Sei que esse é um tema espinhoso e difícil para nossa comunidade, porque nossas “vidas passadas” são sempre usadas pela transfobia para deslegitimar nossas identidades de gênero atuais. Olhar para o nosso passado pode ser e é difícil, porque há coisas das quais não gostaríamos de lembrar, mas honrar os caminhos que trilhamos até nos tornarmos pessoas trans orgulhosas e fortes deve passar por fazer as pazes com quem fomos. Imaginem o pânico da cisgeneridade ao perceber que falamos de quem fomos com generosidade e respeito, reconhecendo que não há contradição em ter habitado outra experiência de gênero na nossa trajetória. A binaridade e a permanência da identidade de gênero são formas de controle que nos impossibilitam atravessar e ser atravessadas pela constante movência das relações e das identidades.

Tenho exercitado o movimento de acolher e falar da “bicha” ou “quase-homem” que fui um dia, porque reconheço que as vivências que tive com “ele” me trouxem até aqui e me permitem olhar para o mundo de uma maneira muito mais transgressora e rica. Vivi coisas lindas sendo “ele” e coisas terríveis também, mas “ele” ainda sou eu de alguma forma e negar sua existência (não falar da minha vida antes de ser travesti ou apagar as experiências que tive) é uma violência à qual não desejo mais me submeter. O princípio da travessia-transgressão nos permite reconhecer que somos e fomos múltiples em uma mesma vida e um mesmo corpo. Se reivindicamos os nomes que nos xingaram e os transformamos em identidades de luta (travesti, sapatão, viado), por que não reinvindicar nossas próprias histórias e lembrá-las honrando os passos das nossas transcestralidades? Não há fórmula certa para isso e é preciso cautela nesse exercício, mas acredito que fazer as pazes com as múltiplas temporalidades e experiências que atravessamos nessa vida é transgressor e pode ser uma prática que potencializa a força vital que nos faz realizar diariamente essa travessia árdua e maravilhosa de viver em transição.


(1*) – Termo proposto por Erika Hilton e Indianarae Siqueira para abarcar a multiplicidade de identidades trans e vivências que sexo-gênero dissidentes.

(2*) – Conceito cunhado por viviane vergueiro atrelando a crítica à cisnormatividade a uma crítica maior ao sistema global capitalista racista e misógino desde uma perspectiva da América Latina e dos países do Sul Global.

COLUNISTA

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Maya de Paiva

[ELA/DELA]

Maya de Paiva é uma artista travesti recifense que circula entre os universos da performance, teatro, cinema e filosofia. É graduada em Filosofia pela FFLCH/USP e estudante da Escola de Arte Dramática (EAD/ECA/USP). Desenvolve trabalhos teóricos e artísticos mobilizando discussões sobre corpo, performatividade, dissidência de gênero, decolonialidade e transfeminismo. Como atriz e performer já participou de sete longas-metragens, uma minissérie, protagonizou dois curtas e realizou peças e performances autorais, como “A Festa”, “TUBO” e “ato de fala”. Desde 2019 atua também como educadora em museus e centros culturais na cidade de São Paulo.
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